Tuesday, May 04, 2004


Os três grandes
(Carlos Heitor Cony)

   LISBOA - Estão mais ou menos juntos. Camões em sua praça, monumental e histórico. Fernando Pessoa mais prosaico, numa mesa daqueles botequins antigos que ainda existem nesta cidade. E, descendo um pouco, Eça de Queirós, com um jeito nobre e sacana, estendendo um véu de mármore, cobrindo com a sua fantasia a nudez forte da verdade e da mulher.
   Pode ser que, para os portugueses, essa Santíssima Trindade que os brasileiros veneram seja polêmica. Na poesia, são muitos os que preferem Garret, na prosa, Camilo ou Herculano, gosto é gosto.
   Mas para nós, brasileiros, Camões, Eça e Pessoa são coisas nossas, como o samba e outras bossas. Aprendemos os dois Camões, o lírico e o épico. O épico pede maturidade e estudo. O lírico ainda é o mais simples, o mais doméstico dos nossos poetas. Recitamos, ou melhor, revivemos Camões em nosso cotidiano, mesmo sem saber que o estamos citando. Um não sei quê, que nasce não sei onde, vem não sei como e dói não sei por quê. Mais serviria se não fora para um tão longo amor tão curta a vida.
   Pessoa é figurinha fácil hoje em dia. E não apenas em Portugal e no Brasil. Chegam a coloca-lo acima de Camões, o que é exagero, mas tudo bem, desde que a alma não seja pequena.
   Eça é discutido em Portugal, mas amado no Brasil.
   Recentemente, na exposição pelo centenário de sua morte, vi uma foto do pracinha Celso Furtado, que integrava a Força Expedicionária Brasileira. Ele passava por Lisboa, muito jovem e bonito, e fez questão de tirar a foto ao lado do monumento ilustre.
   Quantos brasileiros não fizeram o mesmo? Dizem que um mineiro, na altura do quinto gole de pinga, começa a cantar "Elvira escuta". Um bom brasileiro, quando desce às cavernas de seu gosto e de sua alma, esbarra no mefistofélico João da Ega, no pusilânime Damaso Salcede, no retumbante Conselheiro Acácio.
   Eça é mais nosso que de Portugal.

PALAVRAS
(Adriana Falcão)

   As gramáticas classificam as palavras em substantivo, adjetivo, verbo, advérbio, conjunção, pronome, numeral, artigo e preposição.
   Os poetas classificam as palavras pela alma porque gostam de brincar com elas e pra brincar com elas é preciso ter intimidade primeiro.
   É a alma da palavra que define, explica, ofende ou elogia, se coloca entre o significante e o significado pra dizer o que quer, dar sentimento às coisas, fazer sentido.
   Nada é mais fúnebre que a palavra fúnebre.
   Nada é mais amarelo do que o amarelo-palavra.
   Nada é mais concreto do que as letras c.o.n.c.r.e.t.o, dispostas nessa ordem e ditas dessa forma, assim, concreto, e já se disse tudo, pois as palavras agem, sentem e falam por elas próprias.
   A palavra nuvem, chove.
   A palavra triste, chora.
   A palavra sono, dorme.
   A palavra tempo, passa.
   A palavra fogo, queima.
   A palavra faca, corta.
   A palavra carro, corre.
   A palavra palavra, diz o que quer. E nunca desdiz depois.
   As palavras têm corpo e alma, mas são diferentes das pessoas em vários pontos. As palavras dizem o que querem, está dito, e ponto.
   As palavras são sinceras, as segundas intenções são sempre das pessoas.
   A palavra juro não mente.
   A palavra mando não rouba.
   A palavra cor não destoa.
   A palavra sou não vira casaca.
   A palavra liberdade não se prende.
   A palavra amor não se acaba.
   A palavra idéia não muda. Palavras nunca mudam de idéia.
   Palavras sempre sabem o que querem.
   Quero não será desisto.
   Sim nunca jamais será não.
   Árvore não será madeira.
   Lagarta não será borboleta.
   Felicidade não será traição.
   Tesão nunca será amizade.
   Sexta-feira não vira Sábado nem depois da meia-noite.
   Noite nunca vai ser manhã.
   Um não serão dois em tempo algum.
   Dois não serão solidão.
   Dor não será constantemente.
   Semente nunca será flor.
   As palavras também tem raízes mas não se parecem com plantas, a não ser algumas delas: verde, caule, folha, gota.
   As células das palavras são as letras. Algumas são mais importantes que outras.
   As consoantes são um tanto insolentes. Roubam as vogais pra construírem sílabas e obrigam a língua a dançar dentro da boca. A boca abre ou fecha quando a vogal manda.
   As palavras fechadas nem sempre são mais tímidas. A palavra sem-vergonha está aí de prova.
   Prova é uma palavra difícil.
   Porta é uma palavra que fecha.
   Janela é uma palavra que abre.
   Entreaberto é uma palavra que vaza.
   Vigésimo é uma palavra bem alta.
   Carinho é uma palavra que falta.
   Miséria é uma palavra que sobra.
   A palavra óculos é séria.
   Cambalhota é uma palavra engraçada.
   A palavra lágrima é triste.
   A palavra catástrofe é trágica.
   A palavra súbito é rápida.
   Demoradamente é uma palavra lenta.
   Espelho é uma palavra prata.
   Ótimo é uma palavra ótima.
   Queijo é uma palavra rato.
   Rato é uma palavra rua.
   Existem palavras frias como mármore.
   Existem palavras quentes como sangue.
   Existem palavras mangue, caranguejo.
   Existem palavras lusas, Alentejo.
   Existem palavras itálicas, ciao.
   Existem palavras grandes, anticonstitucional.
   Existem palavras pequenas: microscópio, minúsculo, molécula, partícula, quinhão, grão, covardia.
   Existem palavras dia: feijoada, praia, boné, guarda-sol.
   Existem palavras bonitas: madrugada.
   Existem palavras complicadas: enigma, trigonometria, adolescente, casal.
   Existem palavras mágicas: shazam, abracadabra, pirlimpimpim, sim e não.
   Existem palavras que dispensam imagens: nunca, vazio, nada, escuridão.
   Existem palavras sozinhas: eu, um, apenas, sertão.
   Existem palavras plurais: mais, muito, coletivo, milhão.
   Existem palavras que são palavrão.
   Existem palavras pesadas: chumbo, elefante, tonelada.
   Existem palavras doces: goiabada, marshmallow, quindim, bombom.
   Existem palavras que andam: automóvel.
   Existem palavras imóveis: montanha.
   Existem palavras cariocas: Corcovado.
   Existem palavras completas: elas todas.
   Toda a palavra tem a cara do seu significado. A palavra pela palavra, tirando o seu significado, fica estranha. Palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra não diz nada, é só letra e som.


"Quem aumenta seu conhecimento aumenta a sua dor" (Eclesiastes, I, 18)
(Millôr Fernandes)

   Não é o lar o último recesso do homem civilizado, sua última fuga, o derradeiro recanto em que pode esconder suas mágoas e dores. Não é o lar o castelo do homem. O castelo do homem é seu banheiro. Num mundo atribulado, numa época convulsa, numa sociedade desgovernada, numa família dissolvida ou dissoluta só o banheiro é um recanto livre, só essa dependência da casa e do mundo dá ao homem um hausto de tranqüilidade. É ali que ele sonha suas derradeiras filosofias e seus moribundos cálculos de paz e sossego. Outrora, em outras eras do mundo, havia jardins livres, particulares e públicos, onde o homem podia se entregar à sua meditação e à sua prece. Desapareceram os jardins particulares, pois o homem passou a viver montado em lajes, tendo como ilusão de floresta duas ou três plantas enlatadas que não são bastante grandes para ocultar seu corpo da fúria destrutiva da proximidade forçada de outros homens. Não encontrando mais as imensidões das praças romanas que lhe davam um sentido de solidão, não tendo mais os desertos, hoje saneados, irrigados e povoados, faltando-lhe as grutas dos companheiros de Chico de Assis, onde era possível refletir e ponderar, concluir e amadurecer, o homem foi recuando, desesperou e só obteve um instante de calma no dia em que de novo descobriu seu santuário dentro de sua própria casa - o banheiro. Se não lhe batem à porta outros homens (pois um lar por definição é composto de mulher, marido, filho, filha e um outro parente, próximo ou remoto, todos com suas necessidades físicas e morais) ele, ali e só ali, por alguns instantes, se oculta, se introspecciona, se reflete, se calcula e julga. Está só consigo mesmo, tudo é segredo, ninguém o interroga, pressiona, compele, tenta, sugere, assalta, Aqui é que o chefe da casa, à altura dos quarenta anos, olha os cabelos grisalhos, os claros da fronte, e reflete, sem testemunhas nem cúmplices, sobre os objetivos negativos da existência que o estão conduzindo - embora altamente bem sucedido na vida prática - a essa lenta degradação física. Examina com calma sua fisionomia, põe-se de perfil, verifica o grau de sua obesidade, reflete sobre vãs glórias passadas e decide encerrar definitivamente suas pretensões sentimentais, ânsia cada vez maior e mais constante num mundo encharcado de instabilidade. É nesse mesmo banheiro que o filho de vinte anos examina a vaidade de seus músculos, vê que deve trabalhar um pouco mais seus peitorais, ensaia seu sorriso de canto de boca, fica com um olhar sério e profundo que pretende usar mais tarde naquela senhora mais velha do que ele mas ainda cheia de encantos e promessas. É aqui que a filha de 17 anos vem ler a carta secreta que recebeu do primo, cujos sentimentos são insuspeitados pelo resto da família. Já leu a carta antes, em vários lugares, mas aqui tem o tempo e a solidão necessários para degustá-la e suspirá-la. É aqui também que ela vem verificar certo detalhe físico que foi comentado na rua, quando passava por um grupo de operários de obras, comentário que na hora ela ouviu com um misto de horror e desprezo. É aqui que a dona de casa, a mãe de família, um tanto consumida pelos anos, vem chorar silenciosamente, no dia em que descobre ou suspeita de uma infidelidade, erro ou intenção insensata da parte do marido, filho, filha, irmãos. Aqui ninguém a surpreenderá, pode amargurar-se até aos soluços e sair, depois de alguns momentos, pronta e tranqüila, com a alma lavada e o rosto idem, para enfrentar sorridente os outros misteriosos e distantes seres que vivem no mesmo lar.
   Não há, em suma, quem não tenha jamais feito uma careta equívoca no espelho do banheiro nem existe ninguém que nunca tenha tido um pensamento genial ao sentir sobre seu corpo o primeiro jato de água fria. Aqui temos a paz para a autocrítica, a nudez necessária para o frustrado sentimento de que nossos corpos não foram feitos para a ambição de nossas almas, aqui entramos sujos e saímos limpos, aqui nos melhoramos o pouco que nos é dado melhorar, saímos mais frescos, mais puros, mais bem dispostos. O banheiro é o que resta de indevassável para a alma e o corpo do homem e queira Deus que Le Corbusier ou Niemeyer não pensem em fazê-lo também de vidro, numa adaptação total ao espírito de uma humanidade cada vez mais gregária, sem o necessário e apaixonante sentimento de solidão ocasional. Aqui, neste palco em que somos os únicos atores e espectadores, neste templo que serve ao mesmo tempo ao deus do narcisismo e ao da humildade, é que a civilização hodierna encontrará sua máxima expressão, seu último espelho - que é o propriamente dito.
   Xantipa, que diabo, me joga essa toalha!
   "Minha especialidade e meu orgulho: sou o maior leigo do país."
   (O Autor)


NOSSO VOCABULÁRIO
(Millôr Fernandes)

   Os palavrões não nasceram por acaso. São recursos extremamente válidos e criativos para prover nosso vocabulário de expressões que traduzem com a maior fidelidade nossos mais fortes e genuínos sentimentos. É o povo fazendo sua língua. Como o Latim Vulgar, será esse Português Vulgar que vingará plenamente um dia.
   "Pra caralho", por exemplo. Qual expressão traduz melhor a idéia de muita quantidade do que "Pra caralho"? "Pra caralho" tende ao infinito, é quase uma expressão matemática. A Via-Láctea tem estrelas pra caralho, o Sol é quente pra caralho, o universo é antigo pra caralho, eu gosto de cerveja pra caralho, entende?
   No gênero do "Pra caralho", mas, no caso, expressando a mais absoluta negação, está o famoso "Nem fodendo!". O "Não, não e não!" e tampouco o nada eficaz e já sem nenhuma credibilidade "Não, absolutamente não!" o substituem. O "Nem fodendo" é irretorquível, e liquida o assunto. Te libera, com a consciência tranqüila, para outras atividades de maior interesse em sua vida. Aquele filho pentelho de 17 anos te atormenta pedindo o carro pra ir surfar no litoral? Não perca tempo nem paciência.
   Solte logo um definitivo "Marquinhos, presta atenção, filho querido, NEM FODENDO!". O impertinente se manca na hora e vai pro Shopping se encontrar com a turma numa boa e você fecha os olhos e volta a curtir o CD do Lupicínio.
   Por sua vez, o "porra nenhuma!" atendeu tão plenamente as situações onde nosso ego exigia não só a definição de uma negação, mas também o justo escárnio contra descarados blefes, que hoje é totalmente impossível imaginar que possamos viver sem ele em nosso cotidiano profissional. Como comentar a bravata daquele chefe idiota senão com um "é PhD porra nenhuma!", ou "ele redigiu aquele relatório sozinho porra nenhuma!". O "porra nenhuma", como vocês podem ver, nos provê sensações de incrível bem estar interior. É como se estivéssemos fazendo a tardia e justa denúncia pública de um canalha.    São dessa mesma gênese os clássicos "aspone", "chepone", "repone" e, mais recentemente, o "prepone" - presidente de porra nenhuma.
   Há outros palavrões igualmente clássicos. Pense na sonoridade de um "Puta-que-pariu!", ou seu correlato "Puta-que-o-pariu!", falados assim, cadenciadamente, sílaba por ílaba...Diante de uma notícia irritante qualquer um "puta-que-o-pariu!" dito assim te coloca outra vez em seu eixo.
   Seus neurônios têm o devido tempo e clima para se reorganizar e sacar a atitude que lhe permitirá dar um merecido troco ou o safar de maiores dores de cabeça.
   E o que dizer de nosso famoso "vai tomar no cu!"? E sua maravilhosa e reforçadora derivação "vai tomar no olho do seu cu!". Você já imaginou o bem que alguém faz a si próprio e aos seus quando, passado o limite do suportável, se dirige ao canalha de seu interlocutor e solta: "Chega! Vai tomar no olho do seu cu!". Pronto, você retomou as rédeas de sua vida, sua auto-estima. Desabotoa a camisa e saia à rua, vento batendo na face, olhar firme, cabeça erguida, um delicioso sorriso de vitória e renovado amor-íntimo nos lábios.
   E seria tremendamente injusto não registrar aqui a expressão de maior poder de definição do Português Vulgar: "Fodeu!". E sua derivação mais avassaladora ainda: Fodeu de vez!". Você conhece definição mais exata, pungente e arrasadora para uma situação que atingiu o grau máximo imaginável de ameaçadora complicação? Expressão, inclusive, que uma vez proferida insere seu autor em todo um providencial contexto interior de alerta e auto-defesa. Algo assim como quando você está dirigindo bêbado, sem documentos do carro e sem carteira de habilitação e ouve uma sirene de polícia atrás de você mandando você parar: O que você fala? "Fodeu de vez!".
   Sem contar que o nível de stress de uma pessoa é inversamente proporcional à quantidade de "foda-se!" que ela fala. Existe algo mais libertário do que o conceito do "foda-se!"? O "foda-se!" aumenta minha auto-estima, me torna uma pessoa melhor. Reorganiza as coisas. Me liberta. "Não quer sair comigo? Então foda-se!". "Vai querer decidir essa merda sozinho(a) mesmo? Então foda-se!". O direito ao "foda-se!" deveria estar assegurado na Constituição Federal.
   Liberdade, igualdade, fraternidade e foda-se.


Uma crônica sobre o viver...
Era seu último dia de vida, mas ele ainda não sabia disso.

(Roberto Shinyashiki)

   Naquela manhã, sentiu vontade de dormir mais um pouco. Estava cansado porque na noite anterior fora se deitar muito tarde. Também não havia dormido bem. Tinha tido um sono agitado, mas logo abandonou a idéia de ficar um pouco mais na cama e se levantou, pensando na montanha de coisas que precisava fazer na empresa.
   Lavou o rosto e fez a barba correndo, automaticamente. Não prestou atenção no rosto cansado nem nas olheiras escuras, resultado das noites mal dormidas. Nem sequer percebeu um aglomerado de pêlos teimosos que escaparam da lâmina de barbear.
   "A vida é uma seqüência de dias vazios que precisamos preencher", pensou enquanto jogava a roupa por cima do corpo.
   Engoliu o café e saiu resmungando baixinho um "bom dia" sem convicção. Desprezou os lábios da esposa, que se ofereciam para um beijo de despedida. Não notou que os olhos dela ainda guardavam a doçura de uma mulher apaixonada, mesmo depois de tantos anos de casamento. Não entendia por que ela se queixava tanto da ausência dele e vivia reivindicando mais tempo pra ficarem juntos. Ele estava conseguindo manter o elevado padrão de vida da família, não estava? Isso não bastava?
   Claro que ele não teve tempo para esquentar o carro nem sorrir quando o cachorro, alegre, abanou o rabo. Deu a partida e acelerou. Ligou o rádio, que tocava uma antiga canção de Roberto Carlos: "detalhes tão pequenos de nós dois..." Pensou que não tinha mais tempo pra curtir detalhes tão pequenos da vida. Anos atrás, gostava de assistir ao programa de Roberto Carlos nas tardes de domingo. Mas isso fazia parte de outra época, quando ele podia se divertir mais.
   Pegou o telefone celular e ligou para a filha. Sorriu quando soube que o netinho havia dado os primeiros passos. Ficou sério quando a filha lembrou-o de que há tempos ele não aparecia para ver o neto e o convidou para almoçar. Ele relutou bastante: sabia que iria gostar muito de estar com o neto mas não podia, naquele dia, dar-se o luxo de sair da empresa. Agradeceu o convite mas respondeu que seria impossível. Quem sabe no próximo final de semana? Ela insistiu, disse que sentia muita saudade e que gostaria de poder estar com ele na hora do almoço mas ele foi irredutível: realmente, era impossível.
   Chegou à empresa e mal cumprimentou as pessoas. A agenda estava totalmente lotada e era muito importante começar logo a atender seus compromissos pois tinha a plena convicção de que pessoas de valor não desperdiçam seu tempo com conversa fiada.
   No que seria a sua hora de almoço, pediu para a secretária trazer um sanduíche e um refrigerante diet. O colesterol estava alto, precisava fazer um check-up, mas isso ficaria para o mês seguinte. Começo a comer enquanto lia alguns papéis que usaria na reunião da tarde. Nem observou que tipo de sanduíche estava mastigando.
   Enquanto relacionava os telefonemas que deveria, sentiu um pouco de tontura, a vista embaçou. Lembrou-se do médico advertindo-o, alguns dias antes, quando tivera os mesmos sintomas, de que estava na hora de fazer um check-up. Mas ele logo concluiu que era um mal-estar passageiro que seria resolvido com um café forte sem açúcar.
   Terminado o "almoço", escovou os dentes e voltou à sua mesa. "A vida continua", pensou. Mais papéis para ler, mais decisões a tomar, mais compromissos a cumprir. Nem tudo saia como ele queria. Começou a gritar com o gerente, exigindo que este cumprisse o prometido, afinal, ele estava sendo pressionado pela diretoria e tinha de mostrar resultados. Será que o gerente não conseguia entender isso?
   Saiu para a reunião já meio atrasado. Não esperou o elevador. Desceu as escadas pulando de dois em dois degraus. Parecia que a garagem estava a quilômetros de distância, encravada no miolo da Terra e não no subsolo do prédio. Entrou no carro, deu a partida e, quando ia engatar a primeira marcha, sentiu de novo o mal-estar. Agora havia uma forte dor no peito. O ar começou a faltar... a dor foi aumentando... o carro desapareceu... os outros carros também... os pilares, as paredes, a porta, a claridade da rua, as luzes do teto, tudo foi sumindo diante de seus olhos ao mesmo tempo em que surgiam cenas de um filme que ele conhecia bem. Era como se o videocassete estivesse rodando em câmara lenta. Quadro a quadro ele via a esposa, o netinho, a filha e, uma após outras, todas as pessoas de que mais gostava.
   Por que mesmo não tinha ido almoçar com a filha e o neto? O que a esposa tinha dito à porta de casa quando ele estava saindo, hoje de manhã? Por que não saiu com os amigos no último feriado? A dor no peito persistia, mas agora uma outra dor começava a perturba-lo: a do arrependimento. Ele não conseguia distinguir qual era a mais forte, a da coronária entupida ou a de sua alma se rasgando.
   Escutou o barulho de alguma coisa quebrando dentro de seu coração e de seus olhos escorreram lágrimas silenciosas. Queria viver, queria ter mais uma chance, queria voltar para casa e beijar a esposa, abraçar a filha, brincar com o neto... Queria... Queria... Mas não havia mais tempo.